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"Hoje, mais do que em qualquer outra altura da história, a humanidade depara-se com uma encruzilhada. Um dos caminhos conduz ao sofrimento e ao desespero. O outro, à extinção total. Rezemos pela sabedoria para escolher correctamente o caminho a seguir."
Woody Allen
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Antiquário
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4.6.03
Dizia uma personagem de um humorista muito conhecido, e que já não de bom tom citar, que "as opiniões são como as vaginas. Cada qual tem a sua e quem quer dá-la, dá-la." Isto de cada qual ter a sua é discutível mas o assunto é outro. Há algum tempo atrás, um canal de televisão fez um programa em que pretendia medir a inteligência dos portugueses através das perguntas habituais em testes deste género, coisas como "Qual destes três animais tem menos a ver com os outros? A-Canguru; B-Elefante; C-Crocodilo; D-Parafuso." No entanto, escolheram a abordagem errada. Se alguém tentasse medir a inteligência dos portugueses pela quantidade de assuntos sobre os quais têm uma opinião formada, sem dúvida que seríamos imediatamente considerados os maiores cérebros da Europa e, possivelmente, do mundo. É impressionante. Portugal é o paraíso dos inquéritos de rua. Noutros países, avaliam-se as pessoas a olho para se ter a certeza de que se vai falar com alguém que tenha alguma coisa a dizer a respeito do assunto em questão. Cá não é preciso. Independentemente de idade, sexo, profissão, nível social, habilitações académicas, todos os portugueses têm alguma coisa a dizer sobre todos os assuntos que possam passar pela parte do cérebro que, após milénios de evolução, ficou incumbida de idealizar inquéritos. Pensemos num português-tipo e chamemos-lhe Inácio. Ora, o Inácio tem 36 anos, é casado, tem duas filhas, é torneiro mecânico, faz uma perninha quando pode nos bombeiros voluntários, vai à bola ao sábado à noite e passa as tardes de domingo numa esplanada a comer caranguejo, quando o tempo ajuda, ou em casa, em frente à televisão, a ver fórmula 1 e os resumos do campeonato eslovaco, quando o tempo não está de feição. Faça-se uma pergunta ao Inácio sobre a política fiscal do governo e este prontificar-se-á a responder qualquer coisa como “Eu acho que ‘tá mal um gajo ter de pagar ao Estado para trabalhar. Eu sei que é preciso por causa dos hospitais e das auto-estradas mas devia haver outra maneira. É só isso que tenho a dizer.” Óptimo. Chegamos à conclusão de que o Inácio já passou algum tempo a reflectir sobre o assunto ou até a discuti-lo com os amigos entre tremoços e imperiais. Passemos ao assunto seguinte. O que achará o Inácio da fruta transgénica? “Epá, um gajo quando compra fruta é porque acha que aquilo lhe vai dar saúde. Se é para apanhar doenças, não compra. É só isso que tenho a dizer.” Também terá reflectido sobre isto? Então e sobre a situação no Médio Oriente? “Os gajos têm que se entender. É como nós e os espanhóis. Dantes também andávamos sempre à solha e agora damo-nos bem. É só isso que tenho a dizer.” A exploração do planeta Marte? “Acho que fazem bem para o caso de a Terra explodir. Assim já tínhamos sítio para ir morar. É só isso que tenho a dizer.” Podíamos continuar mas tornar-se-ia entediante. O Inácio terá algo a dizer sobre todos os assuntos de que nos consigamos lembrar, da física quântica ao cinema experimental búlgaro, da egiptologia ao hóquei em patins. E é assim que funcionam todos, ou a maior parte, dos portugueses. O que explica este comportamento invulgar? É muito simples. Os portugueses não conseguem, por mais que tentem, admitir a sua ignorância sobre um assunto. Estão geneticamente impedidos de o fazer. É a compensação pelo talento que ainda temos e que nos permite entrarmos pelo mar dentro em barcos de casca de noz à descoberta de novas terras (está certo que esse talento já não serve para nada mas isso é outra estória). Pense-se bem no assunto. Então e os “não sabe/não responde”? Num inquérito há sempre uma percentagem de gente que “não sabe/não responde.” Será que isso deita por terra a minha argumentção? Não. E passo a explicar. Para já, é necessário separar os “não sabe” dos “não responde.” Os “não responde” escusam-se a partilhar a sua opinião com o mundo por casmurrice, porque têm pressa, porque não gostam de aparecer na televisão ou por outro motivo qualquer. Não é que não a tenham. Os “não sabe” é que talvez estejam mais perto de uma legítima assunção de ignorância. Talvez. Não estão. Uma boa parte das perguntas que obtêm respostas “não sabe” são do tipo: “O que acha do sexo anal?” Não há resposta não porque não se saiba nada do assunto mas devido ao síndroma “o que é que a vizinhança/a minha família/o pessoal lá do trabalho vai pensar de mim?” Logo, opta-se por não responder. É uma questão de segurança. E repare-se que não é medo de fazer figura triste. O português-tipo diz que “a guerra fria fez bem em ter acabado derivado ao preço do petróleo” com a maior das convicções. Não é bem isto? Então que se lixe! A culpa não é dele. É da sociedade que o tirou da escola para ir trabalhar e o obriga a ver televisão até os miolos se começarem a liquefazer. O problema aqui é apenas pudor. Uma outra portuguesa-tipo, a Maria do Carmo, sabe muito bem o que quer dizer “fellatio”, até porque é uma leitora assídua do consultório sentimental das revistas, mas recusa-se a admiti-lo por pudor e porque tem de encarar as vizinhas no supermercado no dia seguinte (todas elas sabem o que quer dizer “fellatio” mas todas se recusam a admiti-lo com excepção da Ivone que é uma devassa). A vergonha e o medo da reacção alheia arruma uma boa parte dos “não sabe.” Quanto ao resto, a explicação é ainda mais simples. Quando alguém faz um inquérito e obtém uma resposta “não sei,” aceita-a e passa ao próximo. Faz mal. Há pessoas que cultivam a falsa modéstia e precisam de alguma insistência. Ai não que não sabem. Dê-se um incentivo, um breve “vá lá” basta, e é ver a opinião a jorrar qual rio Nilo dos factos trocados. E onde quero eu chegar com isto tudo? É que acredito sinceramente que a vida no país seria melhor se existissem menos opiniões, se programas como o forum da TSF tivessem de acabar por falta de clientela ou se os rodapés dos programas de televisão passassem vazios de SMS. Mas isto é só a minha opinião. Gostava de saber a vossa. |