"Hoje, mais do que em qualquer outra altura da história, a humanidade depara-se com uma encruzilhada. Um dos caminhos conduz ao sofrimento e ao desespero. O outro, à extinção total. Rezemos pela sabedoria para escolher correctamente o caminho a seguir." Woody Allen

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31.8.03
 
Texto publicado no Jornal de Notícias.

Mãos que falam

Margarida Rebelo Pinto

Quando a vida muda de um dia para o outro, o corpo demora a habituar-se. E só depois é que a cabeça se reajusta à nova realidade. E por fim, muito tempo depois, o coração aceita.
Quando tocava para a saída, eu começava a rezar. Ficava sentada na carteira, esperava que todos saíssem da sala e depois levantava-me muito devagar e desejava secretamente que o corredor já estivesse quase vazio, liberto dos vândalos que desciam as escadas em turbilhão, esperando empurrar pelo menos meia dúzia de caloiras inexperientes como eu.
Quando se passa de um colégio de freiras para uma escola pública aos 11 anos e se pesa menos de 40 quilos, acreditem que dá medo.
Um ano antes eu ia de carrinha para o colégio com os meus irmãos. As freiras cheiravam a terço e a sabão azul e branco, o ginásio era encerado todas as semanas e a farda dava-nos um ar ordeiro e integrado. A minha professora ensinava com doçura e cuidado, íamos rezar à capela, o refeitório tinha copos de plástico e mesas redondas onde despejávamos as nossas lancheiras comparando a nossa jardineira fibrosa com o puré e salsichas do prato ao lado. E depois do almoço, no recreio imenso, meninos e meninas brincavam com juízo, sob o olhar atento das vigilantes.
Ao pé disto, uma escola secundária em Benfica pode ser um pesadelo. E era. Eu ia a pé, escudada pela Antónia, e quando os meus colegas troçaram de mim e perguntaram porque é que a minha avó me levava à escola e lhes respondi que era a minha criada, fui insultada de fascista para baixo. Inútil tentar explicar-lhes que a expressão criada nada tinha de classista, que a Antónia era da família e que era feliz por viver connosco. Inútil explicar-lhes, em 1975, com os ideias do comunismo ao rubro, que se a Antónia não vivesse connosco, teria tido certamente pior sorte, à mercê dos caprichos de um ricaço que a transformaria numa avença humana ou atrás de uma padaria, toda a noite a amassar embriões de pão por uns escassos escudos.
Mas nessa época o Muro de Berlim ainda estava de pé, Fidel pensava que era mais forte que os Estados Unidos e as misérias da Europa de Leste não se viam, escondidas atrás da Cortina de Ferro.
Trinta anos mais tarde, num jornal tido como sério, sai um artigo sobre a nova literatura, sobre a qual, ao que parece, sou precursora e referência e lá vem a velha historia das classes sociais. Eu e outra escritora temos, aparentemente, o mesmo problema: falamos do nosso meio. E eu pergunto: o que fez Miguel Torga, senão falar e falar repetidamente da sua adorada montanha? Mas a montanha de Miguel Torga não é classista, é literatura.
O meu meio, ou aquilo que aparece nos meus livros como o meio que conheço e que retrato, não é mais do que a minha realidade. E a minha realidade também passou por tentar explicar à minha colega de carteira na secundária que era filha de um polícia, o que eram as pratas da família que ainda hoje repousam no louceiro da casa de jantar dos meus pais. Eu tentei explicar-lhe a função das molheiras, travessas, jarros, terrinas e pratos marcadores, mas a miúda, abanando a cabeça, perguntava com alguma lógica:
– Mas afinal para que servem as pratas?
Nunca mais a vi, mas não ficava nada admirada se ela agora quisesse casar uma filha e pusesse na lista de presentes uma terrina ou molheira réplicas de peças antigas que viu, pela primeira vez, no louceiro lá de casa.
O tal meio, ou classe A, ou o que lhe quiserem chamar, não pode nem deve ser uma forma de segregação, nem para os de dentro, nem para os de fora, que talvez, no fundo, não deixem de sentir um fascínio irracional e estonteante por infâncias folgadas em casas
de praia gigantes, criadas que eram da família e jantares de Natal com jarros de prata e pratos marcadores em toalhas de linho bordado, mesmo quando se acaba o dinheiro para o colégio e se mergulha no inferno das escolas públicas.


Porque há momentos em que quase ficamos sem palavras, resta dizer isto: Pode-se acabar o dinheiro para o colégio, as pratas podem ser vendidas, as criadas despedidas ou filiadas no PCP, pode-se ganhar muito dinheiro a escrever trampa, pode-se ter uma "relação" com o Bernardo ou com o Martim, muita coisa pode mudar. Mas há coisas que permanecem. Uma menina irritante e presunçosa transformar-se-á numa mulher ainda mais irritante e presunçosa. E não é de todo improvável que continue a pesar os mesmos 40 quilos.