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"Hoje, mais do que em qualquer outra altura da história, a humanidade depara-se com uma encruzilhada. Um dos caminhos conduz ao sofrimento e ao desespero. O outro, à extinção total. Rezemos pela sabedoria para escolher correctamente o caminho a seguir."
Woody Allen
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Antiquário
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30.9.03
Porque não existe uma máfia portuguesa? Por várias razões. Em primeiro lugar, uma máfia é uma organização criminosa e é inconcebível que exista uma organização criminosa portuguesa porque as palavras "organização" e "portuguesa" só são usadas na mesma frase quando se dizem coisas como "Esta organização é uma bela merda. Tinha de ser portuguesa." Mas ponha-se isso de parte e imagine-se que era possível. Julião Catarreiro decide fundar o primeiro sindicato do crime português para controlar o negócio do alterne entre o Douro e o Minho. Para o ajudar a estabelecer-se, tem os seus oito filhos e as dezenas de sobrinhos, primos e afilhados. A primeira fase da operação "Alterne Sangrento" corre sem problemas de maior. Compram-se casas de alterne por uma bagatela a donos previamente ameaçados de morte ou pior, espancam-se alguns dos que recusam. Enfia-se um ou outro numa betoneira e entrega-se a um pato bravo associado para usar como pilar de um prédio clandestino, incendeiam-se umas boites e já está. Dom Catarreiro é o patrão absoluto de todas as alternadeiras do Norte, da Galiza e das Beiras (porque a coisa correu melhor do que se esperava). Segunda fase da operação. É preciso manter o negócio bem oleado, convencer os potenciais adversários a guardar distância e a polícia a olhar para o outro lado. É aqui que as coisas começam a falhar. Aparece o primeiro concorrente. Um tal Januário de Moimenta da Beira que já andou pelo negócio do alterne e quer voltar até porque já o pai dele tinha um dancing para marinheiros em Matosinhos e o que é de sangue tem muita força. Pede um encontro com Dom Catarreiro em sítio neutro e com oito homens de confiança cada um para não haver problemas. O encontro é marcado na cervejaria "Estrela do Mar" na Póvoa de Varzim num sábado de madrugada. Os oito homens de confiança de cada um dos patrões esperam cá fora depois de revistarem a cervejaria. Duas horas depois saem os dois. Abraçados. Bêbados como cachos. A rir e a cantar um medley do Quim Barreiros. Dom Catarreiro gostou de Dom Januário e até descobriu que tinham sido da mesma unidade na tropa. "É boa pessoa, de certeza. Foi comando como eu," explica aos seus subalternos. Januário fica com o controlo do alterne na Beira Baixa e em parte da Galiza. Mas isso não é o pior. O pior é que a história se espalha, diz-se que Dom Catarreiro é um mãos largas e começam a aparecer gajos porreiros de todos os lados a pedir encontros. Um fica com o Minho porque tem uma filha jeitosa que era perfeita para o Catarreiro mais novo, outro fica com o distrito de Bragança, zona de grande actividade alternadeira, porque ainda é primo pelo lado do cunhado da mãe e por aí fora, incluindo um tal Eurico de Aveiro que fica com a cidade da Guarda e arredores porque, coitado, ficou sem pernas quando trabalhava na Lisnave e merece mais do que a reforma de merda que o estado lhe dá e já não há justiça neste país. Mas mesmo com o negócio retalhado, as coisas podiam ir pior. Pelo sim, pelo não, e porque já se começa a falar muito no assunto, o que não convém, Dom Catarreiro consegue que um afilhado seu seja nomeado comandante distrital da PSP do Porto, à custa de puxar muito cordel, de untar muita mão e de limpar o sebo ao namorado de um secretário de Estado e a dois vereadores. A PSP passa a estar sob controlo e fecha os olhos às actividades do clã Catarreiro e associados. Mas a GNR e a Judiciária não. Um gajo não pode pensar em tudo e, ainda por cima, o dinheiro para subornos não tem abundado desde que o alterne na zona dos hóteis de Espinho foi entregue ao médico que curou o patriarca de uma incómoda dor que podia ser gota ou outra coisa qualquer. Dois meses depois, a organização estava desmantelada e a maior parte dos seus cabecilhas na prisão. O comandante da PSP comprado demitiu-se à pressa e fugiu para Moçambique onde tem uns contactos. Dom Catarreiro, apertado por todos os lados, prepara-se para fugir para o Brasil para evitar o pior mas descobre, já no aeroporto, que os voos estão todos cheios e que para a próxima é melhor fazer a reserva com antecedência. Desperado, mete-se no carro com o intuito de apanhar a auto-estrada e por-se em Vigo porque a bófia está a apertar o cerco. De Vigo até Madrid e daí num voo até Bissau com escala em Casablanca. Afinal, nada está perdido. Ou melhor, não estaria, se o sacana do filho do meio não tivesse guardado para o fim a compra do selo do carro que agora só depois de esperar quatro horas na bicha. Correr o risco de fugir num carro sem selo também não vale a pena porque alguém teve a rica ideia de emprestar a bateria a um amigo que faz tunning e precisava de pôr um carocha retocado a mexer. A única solução honrosa que resta é o suicídio. Antes morto que enfiado na cadeia até sabe-se lá quando e ficar arruinado para o resto da vida. E afinal de contas, não custa nada. É só pegar na pistola, apontá-la à têmpora, apertar o gatilho e... sentir uma queimadura e um cheiro a chamuscado. Mas que merda! Quem é que se lembrou de comprar réplicas-isqueiro porque eram mais baratas e tão perfeitinhas que até têm o mesmo efeito em quem as vê ao longe porque nem é assim tão preciso andar aos tiros nem nada e os tipos costumam acagaçar-se com uma sova bem dada sem ser preciso recorrer a métodos mais drásticos. Ouvem-se sirenes. Acabou-se. É por isto tudo. |